Em 1993, eu estava cumprindo pena
em uma prisão federal em Englewood, no Colorado. Estava no décimo quinto ano de
prisão, por causa de assaltos a banco e atos de sabotagem de cunho político
realizados durante os anos 70. Naquela época, eu não tinha absolutamente nenhum
interesse em nada espiritual. Já tinha me convencido há muito tempo de que
todas as coisas espirituais eram apenas histórias que contamos para nós mesmos,
no intuito de nos ajudar a passar os dias sem morrer de desespero diante da
óbvia inutilidade e desesperança de nossas vidas que, em última instância, são
apenas carne morta, andando e falando até cair morta novamente. Eu realmente não
tinha nenhum interesse em nada espiritual. Mas, em setembro de 1993, um amigo
me convidou para uma reunião com uma mestra espiritual que estava para vir à
prisão; segundo ele, ela era uma mulher loura e deslumbrante do sul do país,
que trazia com ela um exótico ensinamento espiritual indiano. Ele me perguntou
se eu gostaria de ir à capela e passar um par de horas com ela. Claro que eu
gostaria. O objetivo dela não tinha importância. Eu tinha a opção de passar um
par de horas em uma sala pequena, com uma loura deslumbrante do sul do país,
com um ensinamento exótico para oferecer. Que mal poderia haver nisto?
Na noite de sua visita, eu estava
andando até a capela, quando tive o que, retrospectivamente, penso que deve ter
sido um ataque de pânico. Fiquei paralisado, tomado por terror. Sabia que ia
morrer. Meu coração estava batendo disparado; eu estava suando e sem fôlego.
Pensei que provavelmente estava tendo um infarto, embora não sentisse dor.
Então, em vez de ir ver esta maravilhosa e exótica mulher, passei todo o tempo
da sua visita sentado sozinho em um banco no setor superior, esperando que a
experiência diminuísse até desaparecer. Sentado no banco, consegui racionalizar
a experiência e ver que não era nada tão importante assim. Desta maneira,
quando meu amigo saiu da capela e me perguntou por que eu não tinha ido à
reunião, eu disse: "Ah, eu tinha algo melhor para fazer." E não disse
mais nada.
Quase imediatamente depois disso,
comecei a comparecer às reuniões com dois budistas tibetanos que vinham à
prisão uma vez por semana, representando o Instituto Naropa, de Boulder. Eles
eram discípulos de Trungpa Rinpoche. Não sei porquê, eu não tinha tido nenhuma
experiência de despertar repentino; simplesmente comecei a freqüentar o grupo e
a escutar o que eles tinham a dizer. E fiquei surpreso ao descobrir que tudo
que eles estavam dizendo, eu já sabia. Não sabia que já sabia até ter escutado
o que diziam mas, uma vez que tivesse ouvido, cada percepção intuitiva, cada
explicação, cada ensinamento budista oferecido por eles era por mim
instantaneamente reconhecido como o que eu sempre soubera ser verdadeiro. Assim
se iniciou a minha prática budista. Eu me saí muito bem e prossegui muito
rapidamente. Os homens que estavam vindo à prisão, representando o Instituto
Naropa, estavam muito impressionados comigo. Só deus sabe o que estavam
pensando, mas pareciam entusiasmadíssimos por terem me descoberto na prisão.
Depois de algum tempo, eles trouxeram um lama tibetano para receber meus votos
de refúgio e bodisatva. Percebi claramente que era, sempre fora e, sem dúvida,
sempre seria budista. Não sei como contar esta história da minha apresentação
ao budismo de uma maneira que faça sentido. Realmente não faz sentido algum.
Simplesmente parece que aconteceu e tomou conta de mim com uma espécie de
inevitabilidade implacável e irresistível.
Eu também estava comparecendo
semanalmente às reuniões com as pessoas que vinham falar sobre Gangaji (a
mulher loura do sul do país) e mostrar vídeos de seus satsangs. Quer coisa mais
estranha? Eu, que era absolutamente não-espiritual, de alguma maneira tinha
sido completamente capturado por este mundo espiritual, esta encenação espiritual.
Mas, graças à minha profunda compreensão budista, eu agora era capaz de
discernir entre a verdade e a falsidade neste campo, ou pelo menos acreditava
que sim, e comparecia às reuniões sobre Gangaji com uma missão. Queria mostrar
àqueles homens que se deixavam seduzir por esta mulher que ela era uma
mentirosa, uma charlatã e uma trapaceira e eles não deveriam escutá-la. Acho
que eu queria salvá-los de suas oferendas sedutoras. "Os budistas fazem
isso há 2.500 anos e eles sabem o que fazem", eu dizia aos homens, com o
que orgulhosamente considerava grande compaixão. "Iluminação exige
trabalho longo e árduo; é preciso uma prática de meditação disciplinada e, quem
sabe, várias vidas para atingir a liberação, e esta mulher vem aqui e diz que
vocês não precisam fazer nada. Fiquem longe dela, eu os alertava, ela é um
veneno."
Em abril ou maio de 1994, com
três ou quatro meses de prática budista, o homem que tinha me convidado para o
mundo espiritual pela primeira vez foi transferido para outra prisão. Ele tinha
ocupado o cargo extra-oficial de contato entre a administração e todos os tipos
espirituais orientais que vinham à prisão e, em sua ausência, este papel coube
naturalmente a mim, a atual estrela do budismo tibetano na FCI (Instituição
Correcional Federal) de Englewood. Portanto, quando chegou a época do retorno
de Gangaji, em junho de 1994, eu era responsável por tomar as providências
necessárias, avisar às pessoas e, na noite de sua visita, arrumar a capela para
ela, encontrá-la na entrada e acompanhá-la até à capela, juntamente com seus
acompanhantes, etc. Não me importava fazê-lo; ela podia ser o demônio mas, para
mim, deus ou demônio não fazia diferença. Portanto, fiz o que precisava ser
feito e, quando chegasse a hora, eu pretendia ir ao seu encontro e então ir
jogar tênis. Eu jogava muito tênis naquela época.
Encontrei-a na calçada. Ela
caminhou até mim, segurou a minha mão, olhou para mim e disse: "Você deve
ser John." (Ela sabia o meu nome porque as pessoas que traziam os seus
ensinamentos à prisão tinha contado a ela sobre este cara que a detestava,
falava mal dela e era furiosamente contra ela.)
E quando ela falou, tudo parou.
Não sei como dizê-lo de outra maneira: tudo simplesmente parou. Os pensamentos
pararam. O movimento agitado da atenção, movendo de objeto em objeto, parou.
Todo o mecanismo de pensamento e compreensão, intenção, motivo, história,
memória (tudo que eu acreditava que era) simplesmente desapareceu. E, na
ausência de tudo mais, eu permaneci.
É claro que me apaixonei imediata
e totalmente por ela. Passei o primeiro ano após o nosso encontro em um estado
de extrema bem-aventurança e a nítida visão da realidade cristalina da unidade
de todo o ser. Escrevi a ela praticamente todos os dias e, por um milagre
inimaginável, ela respondeu às minhas cartas com a mesma frequência. Ela falava
sobre mim aonde quer que fosse. Eu era o seu preferido, a sua estrela. E passei
aquele primeiro ano mergulhado em bem-aventurança, sem julgamento, sem
preferências, nada além de extrema felicidade.
Mas no fundo de tudo, havia a
crença invisível, e não menos poderosa por estar oculta, de que esta
bem-aventurança, este novo estado, esta nova história era realmente eu. A estas
alturas, eu tinha começado a ler todos os livros espirituais que pudesse encontrar.
Agora percebo que fiz isso para poder contar para mim mesmo a história do John
Sherman iluminado, o John Sherman realizado, a nova e melhorada versão de John
Sherman. Eu li os livros de Papaji. Li Nisargadatta e o Cânon Pali budista; li
Wei Wu Wei e Rumi; li os Vedas, o Gita, os Upanishads, os Sutras do Coração e
Diamante, o Sutra Vajra-Samadhi, o Sutra das Dez Ações Saudáveis, o Sutra da
Flor de Lótus, e muitos outros Sutras Mahayana; li o Tripitaka, o Yoga
Vasistha, li sobre Shankara e seus ensinamentos. Não li Ramana porque eu já
sabia o que ele tinha a oferecer. A única coisa que Ramana tinha era a pergunta
"Quem sou eu?" e eu já sabia quem eu era: eu era
Ser-Consciência-Bem-Aventurança; eu era a própria Consciência Desperta, pura,
límpida e imaculada. Escrevi a Gangaji naquele ano, dizendo "ouço as
pedras cantando silenciosas árias do Ser para mim." Portanto não precisava
de Ramana, ele era simples demais, elementar demais para mim.
Depois de um ano mais ou menos,
descobri que a bem-aventurança estava ausente. Descobri que queria outras
coisas; queria coisas mais humanas, como o amor verdadeiro de uma mulher, um
acesso físico mais direto a Gangaji, sair da prisão, dinheiro suficiente para
viver confortavelmente na prisão e, mais tarde, quando fosse libertado, alguma
esperança de segurança e conforto, e coisas desse tipo. Descobri que queria
tudo isso e muito mais, coisas que eu não tinha, e a experiência de felicidade
suprema e paraíso começou a se desfazer, revelando que não era tudo aquilo que
prometia ser. E, semelhante a qualquer boa droga cujo efeito passa, a
experiência de abstinência foi mais horrenda e desgraçada do que a
"viagem" fora bela e magnífica.
Assim, a experiência de paraíso,
felicidade suprema, "tudo é um" e ausência de separação desfez-se
diante da minha crescente convicção de que eu precisava e não tinha certas
experiências importantes que me eram negadas: uma nova nova história sobre mim
tinha surgido, a história de John Sherman, o ser empobrecido e carente. O que
iria acontecer comigo quando eu saísse da prisão? Eu não tinha emprego. Não
tinha dinheiro. Não sabia fazer nada. Não tinha ninguém para me amar... O que
eu iria fazer? Como sobreviveria? Será que o Buda me ajudaria então? Será que
Gangaji me ajudaria?
Tudo desmoronou rapidamente, e o
que tinha sido o paraíso, um ano inteiro de felicidade suprema, agora estava
revelando a sua outra face: horror, feiura, claustrofobia, contração,
hostilidade, carência, falta, querer o que não poderia ter, resistência fútil,
apego, perda, desejo intenso...
Caí em um desespero abjeto.
Lembro-me que queria gritar aos céus e implorar ao deus no qual não acreditava
que fizesse com que eu nunca tivesse conhecido aquela mulher; que fizesse com
que eu nunca tivesse escutado falar de iluminação, de auto-realização nem nada
daquele lixo. Antes de conhecê-la, tudo estava bem. Eu jogava tênis, bridge,
fumava um baseado de vez em quando, passava o tempo com meus companheiros, eu
estava bem mesmo. Eu não tinha muito e não esperava grande coisa. Mas agora que
o paraíso, a felicidade suprema e a liberdade eterna e incondicional tinham se
revelado e tendo visto tudo aquilo desaparecer, eu daria o que quer que fosse
para jamais ter ouvido falar de nada daquilo. Eu tinha escutado os budistas
dizer que simplesmente ouvir a palavra iluminação já era o maior golpe de sorte
em uma vida. Eu me lembrava e cuspia naquela memória. Eu daria tudo para jamais
ter escutado aquela palavra e poder simplesmente voltar para o ponto de onde
começara; daria tudo para ter uma segunda chance de dizer ao Alan, o cara que
tinha me convidado para ir vê-la: "Não, não quero me envolver com nada
disso." Mas o inferno não desaparecia, o desejo intenso não arrefecia. A
claustrofobia não relaxava; a dor, o sofrimento, a penúria doentia não iam
embora. Não havia nada que fizesse tudo aquilo desaparecer.
Então, finalmente, em desespero,
não por causa de alguma compreensão, intuição ou percepção nova, motivado
simplesmente pela desesperança e o desespero, voltei-me para Ramana pela
primeira vez. Comecei a ler os livros de Ramana. Eu carregava o livro grosso de
capa vermelha chamado Talks With Ramana Maharshi [Conversas com Ramana
Maharshi] comigo aonde quer que fosse, e lia o tempo todo. Eu lia e não
conseguia entender quase nada do que ele dizia. Ele falava de conceitos e
práticas com os quais eu estava habituado, como pranayama, mantra e japa, o
vazio e a destruição da mente, e outras coisas assim, mas falava sobre tudo
aquilo como se fosse irrelevante. As pessoas vinham até ele com perguntas e,
embora ele fosse incrivelmente erudito, conhecendo a fundo todas as coisas
relativas ao entendimento espiritual e possuindo uma compreensão imediata e
profunda do que elas perguntavam, mesmo respondendo a elas a partir daquela
compreensão e adotando o vocabulário e o ponto-de-vista delas, era óbvio que
para ele tudo aquilo era irrelevante.
A única coisa que tinha qualquer
interesse para Ramana era a pergunta "Quem?" Em todo e qualquer caso,
Ramana encorajava todos que o procuravam a descobrir a verdade do que eles são.
Ele nunca se desviava disto. Jamais. Repetia frequentemente. Quem está
perguntando? Quem tem este problema? Quem precisa disto? Quem sofre com isto?
Quem quer isto? Quem é você, de verdade? O que é você, realmente?
Com relação ao ego, ele encorajava
estas pessoas que eram tão espiritualmente educadas a esquecer de tudo que
sabiam sobre a suposta inexistência do ego, aconselhando-as, em vez disso, a
"agarrar o ego pelo pescoço". Estas são as suas palavras. Agarrar-se
ao ego e ver de onde ele vem, para onde ele vai e o que ele é. Ele falava sobre
o pensamento-eu e dizia a todos para tentar ver de onde ele surge. "De
onde ele vem?" perguntava ele. "Eu sei que você está repleto de
entendimento espiritual, que você sabe tudo sobre a felicidade suprema, e que é
perito em pranayama e tudo mais, mas e este 'eu'? O que é este 'eu'? O que é
realmente?" Esta é única coisa em que estava interessado. Ele dizia às
pessoas para fazerem apenas uma coisa: simplesmente descubra o que você é, e
tudo o mais vai se resolver por si mesmo.
Em meu desespero, levei suas
palavras a sério. E comecei a procurar, da melhor maneira que podia, tentando
descobrir o que eu era. Eu não era muito bom nisso, mas comecei a procurar o
pensamento-eu, a procurar o ego, o sujeito, a consciência. Comecei a procurar o
que é permanente. O que sou eu, de verdade? De onde vem o pensamento
"eu"? A que ele se refere? Afinal de contas, o que é este
"eu", esta história que contém uma única palavra?
Tive muita sorte porque estava na
prisão e, por causa de delitos anteriores, só tinha que trabalhar durante 20
minutos todos os dias. A administração da prisão onde eu estava naquela época
tinha me proibido de trabalhar a menos de 30 metros de qualquer computador e o
único trabalho que se encaixava nesta descrição era a limpeza do banheiro da
sala dos guardas, uma tarefa que levava no máximo 20 minutos para ser
completada, e depois disso eu estava livre para caminhar no pátio, sentar na
minha cela, e fazer qualquer coisa contanto que ficasse longe dos computadores.
Portanto, passava todo o meu
tempo procurando: procurando, procurando e procurando; lendo Ramana,
procurando, e nada mais; totalmente preocupado, obcecado mesmo pela necessidade
de descobrir a verdade sobre mim mesmo. Eu tinha ouvido Ramana dizer que o
único problema é a falsa convicção acerca do que eu sou, que a única solução é
a verdade, e que a verdade é fácil. Ouvira Ramana dizer que nenhuma
experiência, nenhum fenônemo, nada de bom e nada de ruim tem qualquer
significado nesta questão. Nada disso é errado. Suas práticas não estão
erradas, suas crenças e convicções não estão erradas, suas coisas boas e más
não estão erradas. Elas simplesmente não têm nenhuma utilidade aqui. Descubra
quem você é e tudo mais se resolverá por si mesmo.
Eu ficava sentado no meu beliche,
olhando para "dentro". Eu sabia que o mero pensamento de olhar para
dentro não era nada espiritual. Dentro e fora não existem, não é mesmo? Tudo é
um, não existe dentro nem fora, nem em cima nem embaixo, nem eu nem você, nem
sofrimento, nem o fim do sofrimento, e daí por diante. Mas ainda assim, eu
tinha que fazer alguma coisa, tinha que olhar em algum lugar, portanto tentei
olhar para dentro, de todo coração, para descobrir o que é este dentro. O que é
estar dentro? Onde dentro se localiza? E eu buscava a "mim" e buscava
o "eu". E buscava o ego. Encontrava experiências de contração e
carência, pequenos nós de sensações desagradáveis que se revelavam como estando
dentro do que parecia ser o corpo. E aquilo tinha a sensação de "mim".
Então devia ser o ego. Pouco me importava que isto fosse espiritualmente
incorreto. Eu me dirigia ao que quer que fosse que parecia ser eu e me agarrava
àquela coisa, segurando-a pelo pescoço. E nada demais acontecia. Mas eu
continuava, eu persistia. Sentava na minha cama e me agarrava a estas
experiências de carência, de desejo intenso, contração e agressão, dizendo em
silêncio a mim mesmo, com toda a energia agressiva que pudesse conjurar: "Morre! Morre! Morre!",
tentando de todo coração matar esta coisa de uma vez por todas. Afinal de
contas, o insight espiritual mais comum é que o ego tem que morrer ou ser
curado, e a cura me parecia altamente improvável.
Um dia, sentado no meu beliche,
tentando fazer com que o ego morresse, me ocorreu o seguinte: "Ora, esta
coisa nunca vai morrer!" E eu explodi em gargalhadas. Eu morri de rir...
Foi bom.
No chuveiro, sentindo a água
escorrendo pelo meu corpo, eu me concentrava na sensação da água na pele,
tentando ver o que era esta experiência de estar consciente, não da água ou da
pele, mas simplesmente a sensação nua e crua em si mesma. Como Ramana tinha me
dito para buscar a mim mesmo, eu tentava descobrir o que era estar consciente
daquela sensação. Era a única coisa que eu tentava fazer, buscar a mim mesmo,
aprender como procurar a mim mesmo procurando. Eu procurava o sujeito. O que
sou eu, de verdade? O que é isso que sente a sensação da água na pele? O que é
isso que percebe que aquilo é água e isso é pele? O que é isso que vê estes
pensamentos? De onde vêm estes pensamentos? O que é pensamento? Como posso
capturar isso?
E um dia no chuveiro (nunca mais
esquecerei este dia enquanto viver) eu estava ensaboando a minha axila enquanto
olhava para dentro, tentando ter a experiência direta do "experienciador".
Quem está sentindo isto? Quem é este que sente isto? O que é estar consciente
disto? De repente, sem qualquer aviso, eu vi, sem a menor possibilidade de
engano, isto que Ramana chama de pensamento-eu explodir, a partir do nada. E
reconheci, instantânea, inesperada e indisputavelmente que era a sensação real
disso que sempre tinha acreditado ser eu. Ele apareceu do nada, no nada, como a
primeira fagulha de um foguete que explode em um espetáculo de fogos de
artifício, irrompendo no céu escuro e vazio, precipitando-se para fora, florescendo
e se ramificando, como uma chuva flamejante de memórias, intenções,
expectativas, o enredo sobre o que eu estou fazendo e por quê, e o que pretendo
fazer em seguida e por quê, e tudo mais; flor e ramo, desabrochando e então
desaparecendo no mesmo nada do qual se originaram, de onde surgia quase
imediatamente um outro eu, uma outra narrativa da minha história. E foi tão
encantador e vívido, com surpreendente insight e entendimento espiritual,
confirmação e alívio, que uma torrente de lágrimas escorreu pelo meu rosto,
felizmente oculta dos outros presos endurecidos também presentes no banheiro
coletivo pela água do chuveiro.
E nada disso significa coisa
alguma. Nada disso tem a ver com o objeto da auto-investigação. A maravilha de
se ver que o ego não pode morrer, o esplendor de se ver o
nascimento-morte-renascimento do pensamento-eu, o ano de felicidade suprema, o
colapso da bem-aventurança, os meses no inferno, nada disso significa coisa
alguma.
Minha intenção, ao relatar a você
este melodrama espiritual, não é sugerir que a a minha agitação cega seja a
maneira correta de conduzir a auto-investigação, pelo contrário: com o meu mau
exemplo, quero mostrar a você que a auto-investigação é infalível e que você
não tem como fazê-la da maneira errada. Por pior que seja a maneira como é
realizada, uma vez que a intenção de descobrir o que você é tenha tomado conta
de você, a auto-investigação o conduzirá de volta ao lar.
Eu pensava que sabia do que
Ramana estava falando; pensava que entendia o que ele queria dizer quando
falava do eu-pensamento, do eu-eu, de libertar-se da mentira, e daí por diante.
Pensava que compreendia que o que ele estava prometendo quando falava de Auto
Realização e, mesmo quando ele insistia que a Auto Realização não é e nem pode
ser nada de novo, e que não pode ser um estado novo, eu não me deixava enganar.
Eu sabia que o "estado natural" de que ele falava seria algo
inteiramente puro e novo, um estado com o qual nós, prisioneiros que somos de
uma teia de ignorância e desejos insatisfeitos, apegos e resistência, sequer
podemos sonhar. Eu sabia, com certeza absoluta, que a realização significava o
fim de desejos insatisfeitos, apegos e resistência, o desmatamento da selva de
intelecto e sensação que é a vida humana. Conforme procurava desesperadamente
por mim mesmo, eu sabia o que aconteceria quando finalmente visse a verdade resplandecendo
na escuridão e sabia que toda a confusão e a ignorância desapareceriam ao sol
da manhã.
Como poderia imaginar que não era
preciso fazer nada com relação ao apego e a resistência, a confusão e a
ignorância e o desejo intenso de felicidade? Eu pensava que a falsa crença era
a causa de todas estas coisas e que, em sua ausência, elas desapareceriam e a
clareza prevaleceria. Eu pensava que o objetivo da auto-investigação era
livrar-me destes estados e experiências opressivos.
Mas, na realidade, o sofrimento
da vida humana não tem nada a ver com os estados de confusão e ignorância, os
atos de apego e resistência, ou a experiência de um desejo intenso de felicidade;
o sofrimento não tem nada a ver com a confusão miserável que caracteriza grande
parte da vida humana e nada a ver com a oscilação nauseante entre experiências
boas e ruins. Todas estas coisas, todos estes estados, os bons, os maus e os
neutros, são apenas histórias sobre você, no esforço de explicar e mostrar-lhe
a si mesmo e, quando finalmente são vistos pelo que são, percebe-se claramente
que eles não podem lhe fazer nenhum mal nem tampouco ajudá-lo.
Mas como poderia saber isso, prisioneiro
que estava da convicção de que esta história sobre mim era realmente eu, e que
a minha felicidade, minha própria existência dependiam do resultado desta
história?
Ainda assim, apesar de todos os
meus esforços para sabotar o método de Ramana, o remédio fez efeito.
É útil pensar na autoinvestigação
como um remédio, como um antibiótico que se toma para curar uma doença
infecciosa. Se você está doente, com uma doença infecciosa, você consulta um
médico; ele lhe receita um antibiótico, que você tem que tomar quatro vezes ao
dia durante quatorze dias. Ele lhe dirá para tomar todos os comprimidos, mesmo
se começar a se sentir melhor antes do prazo de quatorze dias.
A autoinvestigação consiste em
simplesmente olhar diretamente para si mesmo, para o simples e inegável fato de
que você está aqui, olhar para esta experiência nua de Ser, sem esperar nem
projetar nada neste olhar. Este Ser, esta sensação de presença é a totalidade
da verdade sobre você. Ela é permanente, imutável e jamais ausente. Ela sempre
esteve presente no pano de fundo de cada momento de sua vida. Ela está presente
enquanto você dorme, quando está acordado, sonhando, trabalhando, se
divertindo, pensando, e está aqui quando você está querendo algo e quando não
está querendo nada. Neste momento, ela é exatamente a mesma que era quando você
tinha três, treze ou trinta anos. Ela é isto que faz com que seja impossível
negar que você existe. Ela é a única verdade que existe e olhar para a verdade
é o remédio que destrói a mentira de que você é a sua vida.
E você tem que tomar este remédio
não apenas três ou quatro vezes ao dia, mas absolutamente sempre que se
lembrar, e precisa tomá-lo até o fim de sua vida. Mas você logo verá, e
eventualmente compreenderá, que olhar para a realidade de si mesmo é o que você
sempre quis, desde o dia em que nasceu e, portanto, você não terá qualquer
dificuldade em lembrar de retornar a este poço e beber desta água, tomar este remédio.
Quando você toma um antibiótico
para curar uma infecção no corpo, você não sabe exatamente o que está
acontecendo conforme o tratamento prossegue. Você não pode ver nem sentir o
envenenamento gradual e os estertores dos micro-organismos que invadiram o seu
corpo. Você não está diretamente consciente dos processos biológicos da cura
que ocorrem enquanto o poder da doença diminui com a morte de sua causa. Você
só sabe que, gradualmente, pouco a pouco, cada dia você se sente um pouco
melhor do que se sentia no dia anterior.
O mesmo ocorre com a
autoinvestigação. Não espere uma mudança de perspectiva ou um estado
espetacular, pois não é isto que a verdade lhe traz. A verdade não é algo novo,
e a verdade traz unicamente a verdade, retirando de você a mentira que é a
única causa do seu sofrimento. Muitas experiências podem ocorrer, boas e más,
conforme a mentira se arrefece e a necessidade de controlar as coisas morre com
ela, mas elas não significam nada. Aos poucos, cada dia você se sentirá melhor
do que no dia anterior, independentemente da natureza das experiências que vão
e vêm em você. E por fim, você estará em paz com tudo. Como sempre esteve.
Pode contar com a continuação do
ego e, com ele, o drama da história da sua vida, mas ele significará cada vez
menos para você, pois perderá a sensação de importância desesperada que tem
agora. Afinal de contas, o ego não é o problema. A mentira de que o ego é você,
este é o único problema.
E lembre-se sempre: você não tem
como errar. A única coisa necessária é a intenção firme de olhar para si mesmo
diretamente, sempre que puder, e tudo mais se resolverá por si mesmo.
Esta é única coisa de valor que
se pode deduzir de meus esforços na direção errada. Apesar de toda a minha
estupidez e o meu gosto pelo drama, tudo que fiz a partir do momento em que me
voltei para a autoinvestigação inadvertidamente me trouxe face a face com a
experiência direta de mim mesmo, com a verdade de mim mesmo, repetidamente. E
foi isso, e somente isso, nunca o que eu pensava que estava acontecendo, que
com o passar do tempo erradicou a mentira de que eu sou a minha vida. Seja o
que for que eu pensava que estava acontecendo, eu estava olhando para mim mesmo,
repetidamente, sem saber, e foi unicamente isso que me libertou da mentira.
Eu continuei a investigação;
continuo ainda hoje, e pretendo continuar até o meu último suspiro. Com o
tempo, minha crença na história foi diminuindo e agora parece ter desaparecido
completamente. Não posso dizer que em um determinado dia encontrei a liberação
ou que em um certo dia despertei para a liberdade eterna e incondicional. Na
verdade, jamais houve um momento sequer em que eu não tenha sido o que eu sou,
e o que eu sou não é nada mais do que a certeza de ser que é liberdade eterna,
paz e amor.
Quanto à minha história, à minha
vida, ela com certeza mudou. O que antes era difícil, agora é fácil e
agradável, o que era amargo tornou-se doce, o que era privação transformou-se
em realização, e o que era uma prisão agora é liberdade eterna e esplendorosa. Mas,
na verdade, sempre foi assim. As circunstâncias eram, e ainda são, às vezes
difíceis e outras vezes fáceis, às vezes agradáveis e outras difíceis, às vezes
carentes e outras vezes plenas, às vezes restritas, outras vezes abertas e
livres, mas a vida em si jamais foi outra coisa senão um instrumento através do
qual eu saboreio a mim mesmo, através do qual eu vejo o desenrolar interminável
desta tentativa fútil e gloriosa de dizer a mim mesmo o que eu sou. Toda a vida
é isso. A totalidade do cosmos e todo o tempo e o espaço são isso. Cada
pensamento bom e cada pensamento ruim, cada ação generosa e cada ato egoísta,
cada momento de clareza e cada momento de confusão obscura são um fio neste
tecido do ser que é sem fim, que é um infinito ato de tornar-se.
O que mudou mais fabulosamente
foi que, na ausência da crença de que eu sou a minha vida, e na ausência de
qualquer convicção sobre o que eu sou e o que eu não sou, a energia de
agressão, ódio e traição que naturalmente flui a partir da crença sobre o que eu
sou simplesmente desapareceu. Nada está em jogo aqui. Nada que acontece aqui me
atinge, tira o que quer que seja de mim, me dá o que quer que seja, ou me
modifica de qualquer maneira que seja. Foi sempre assim, e foi somente a crença
de que eu sou a minha vida, de que eu sou uma coisa, o que quer que seja, que
fez com que parecesse diferente.
Se eu tivesse tido uma orientação
prática e direta na execução da auto-investigação, minha busca poderia ter sido
muito mais curta, mais direta e menos melodramática mas, sem os meus passos em
falso e a minha confusão com relação ao que precisava fazer, talvez eu nunca
tivesse percebido que o que eu pensava que estava fazendo era irrelevante. Sem
os meus tolos esforços para ver o pensamento-eu, para me tornar o eu-eu, para
me livrar do ego desejando a sua morte ou vendo que ele era falso, muito
provavelmente eu jamais teria visto a perfeita simplicidade da
auto-investigação de Ramana, jamais teria percebido e não poderia agora sugerir
a você que, seja lá o que for que você está fazendo ou as razões pelas quais
você pensa que está fazendo o que está fazendo; independentemente do que você
pensa que vai ganhar ou perder com isto, simplesmente olhe para si mesmo,
sempre que lhe ocorrer, e tudo mais se resolverá por si mesmo.
Em última análise, se você
acreditar que é qualquer coisa, seja esta a menor, mais limitada,
insignificante, sem esperança e inútil de todas as coisas em toda a criação, ou
seja ela eterna, infinita, a própria Consciência radiante e esplendorosa, a
fonte e a origem de toda a criação, ou qualquer coisa entre estes dois
extremos, você sofrerá e lutará para proteger, melhorar ou piorar a história de
si mesmo. Em última instância, só a verdade importa, e a verdade de você está
sempre presente; ela é inegável e está sempre instantaneamente acessível a
você, em todas as horas e circunstâncias. Simplesmente olhe para si mesmo neste
momento e você verá.
John Sherman
24 de novembro de 2006
(Tradução de Carla Sherman.)
Texto colhido do site:
Somente agora conheci este site. A história é maravilhosa. Obrigado pela tradução e publicação. Parabéns!
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